Resenha do livro: A Guerra não tem Rosto de Mulher
Quantas histórias uma alma pode guardar? Por quanto tempo? As mulheres russas nunca foram os heróis da Segunda Guerra Mundial, sabendo disso, não ousaram compartilhar suas versões. Se lá estiveram, não se tornaram homens. Permanecem mulheres. Carregando esse peso, abriram suas casas para a jornalista Svetlana Aleksiévitch. O livro A Guerra não tem Rosto de Mulher narra o que foi dito nesses encontros. Com ele, a escritora pretende fazer lembrar, tirando do esquecimento toda uma história que não foi contada, e em movimento ainda mais grandioso, fazendo os fatos ressurgirem na mente das próprias personagens que não foram ouvidas a tempo. Esqueceram. Ou tentam esquecer.
Não é de se imaginar quantos assuntos ficaram guardados após a guerra. Família, maternidade, vingança, amor e o ato de ser mulher. Histórias que só as mulheres podem contar, mas que foram caladas. A narrativa da obra se divide em capítulos temáticos, por vezes também cronológicos. A autora divide blocos de falas de diferentes mulheres e todos os que gritam sobre a mesma dor, são colocados no mesmo capítulo. Temos também histórias completas, do início ao fim da guerra. Há a certeza de que irão falar da tão comentada vitória ao final, claro, mas mesmo ela machucou as mulheres da guerra. Para muitas, a pós-guerra que destroçou. Se existe algo sobre o que entender nesse livro, é sobre a solidão, e ela veio depois.
Mudam-se as vozes em meio a leitura. Ora se lê a autora, ora se lê as mulheres da guerra. É como se todas estivessem contando a história diretamente para o leitor, dizendo o que viram. É interessante acompanhar a narração pessoal da autora, já que nos acostumamos a dividir o mesmo espaço que ela, o espaço da escuta. Porém, curiosamente, ao longo da obra sentimos sua voz se esvaindo, como se não tivesse mais forças para escrever, como se só as palavras das mulheres bastassem (e bastam). Como quase companheiros de sua jornada, não a culpamos. Mesmo sem a narração de Svetlana, mesmo sem suas percepções e comentários sobre os espaços das entrevistas, não nos imaginamos em outro lugar, além da frente da personagem da vez, que está contando sua guerra. Por vezes, quando algum diálogo aparece no meio da narração da história, quando a jornalista faz uma pergunta, é de se assustar que ela ainda está lá. Apesar de querermos sempre saber os comentários da jornalista, simplesmente esquecemos dela. Lembramos dela quando choramos e nos perguntamos se ela também chorou ou se ficou com receio de chorar. Encontramos nossas respostas ao longo do livro.
O jornalismo que Svetlana faz é o literário. Ela tem sua própria marca. Ficamos intrigados. Como leitores, somos imergidos nesses cenários, é como se víssemos tudo que nos é narrado. A verdade, e se sabe que só pode ser a completa verdade, nos impressiona. É cruel. Como fazer nós leitores nos identificarmos com quem mata? Com quem vê morrer? Com quem sacrifica? Svetlana aposta na humanização presente nos detalhes, esses que ninguém além das entrevistadas poderiam contar. De repente, damos razão para todas elas, só por causa de uma mala cheia de bombons. Você até se vê enchendo essa mala. Então você entende todo o resto. Você vê a crueldade quando uma mulher morre por amor ou por um cachecol vermelho. E essa pode ser a grande razão da escritora receber tantos retornos após a publicação de seu livro. Ela conta que quem não quis falar, de repente queria, e quem falou queria falar mais. Além de escolher as falas presentes no livro pelos capítulos temáticos, ela também selecionou as entrevistadas pelo cargo que ocuparam na guerra. Quis cargos diferentes para saber sobre diferentes guerras. Da lavadeira que ia atrás até a sapadora que ia na frente. Quando somos levados para a visão pessoal dela, podemos visualizar as pilhas de cartas descritas. Muitas mulheres imploravam para falar, para serem ouvidas. É de se impressionar como ela conseguiu terminar o trabalho. Como aguentou não escrever mais nada. Como pôde selecionar. Só uma jornalista consegue isso, só uma jornalista sabe que precisa.
O que mais marca? As pausas. Momento que bruscamente paramos a leitura para perceber que já vimos algo anteriormente na obra e esse algo se repete, se repete, se repete. A palavra alma é encontrada diversas vezes pelo texto. O que se lembra é o desejo da escritora de não relatar a guerra, mas contar as histórias das almas das que estavam lá. Como não é a vez (voz) dela, ela não relata por si mesma, deixa as entrevistadas entregarem os pequenos detalhes. Seu maior feito, cumprindo com a promessa de alma, é escolher publicar esses detalhes, que seriam facilmente cortados em outros materiais. Outra repetição é o amor. Encontramos várias mulheres respondendo a uma pergunta, que parecia até retórica: "Existe amor na guerra?". Isso faz todo sentido quando chegamos em um capítulo que é só dele. Era esse capítulo que a escritora desejava construir. Tudo se encontra no propósito inicial. Por isso é tão importante que a voz da autora esteja presente também, isso que faz a diferença. O acesso aos bastidores de tudo isso faz com que os fatos se costurem, mais uma vez. Costura tanto, que nos amarra. Lemos tudo até o final. É isso que faz valer a pena ler Svetlana Aleksiévitch. Ela nos prende com um cachecol vermelho. Não tem como esquecer aquele cachecol vermelho.
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